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"Rave do pagode" coloca Thiaguinho como porta-voz de uma geração

Chico Barney

29/04/2019 23h09

Thiago André Barbosa (Foto: Reprodução)

Realmente foi uma bagunça a organização do "Tardezinha Surreal" em São Paulo, evento ocorrido no sambódromo do Anhembi no último sábado, dia 27 de abril. Confusão na entrada, cerveja quente e uma aparente lotação excessiva foram alguns dos problemas presenciados pelo blog em uma inspeção informal. É possível ler relatos mais aprofundados e seus desdobramentos nesse post do Léo Dias.

Mas minha intenção aqui é discorrer sobre o impactante espetáculo promovido por Thiaguinho e seus parças, com direito a Prateado no baixo, em cima do palco. Foram mais de 5 horas de show, o que certamente justifica o "surreal" do nome. Se Kanye West agora tem uma missa, o ex-vocalista do Exaltasamba tem sua própria maratona há cerca de 4 anos. E mais do que promover uma animada festa, uma espécie de rave do pagode que vai além dos limites da disposição atlética, o cantor celebrou o passado, o presente e o futuro de toda uma geração.

As participações especiais foram bastante emblemáticas. A primeira foi Rodriguinho, com direito a um longo set em que relembraram os sucessos dos Travessos, além das músicas que compuseram juntos de 2007 para cá. O sucesso de uma delas, "Livre para Voar", serviu como uma espécie de piloto para a carreira solo de Thiaguinho, projeto que só iria se consolidar em 2012.

Os dois juntos são responsáveis por sucessos de quase todas as bandas do pagode entre o fim da década passada e o começo desta. De Sorriso Maroto a Jeito Moleque, a dupla virou uma grife festejada e desejada por muitos artistas. Se hoje em dia os sertanejos possuem grupos gigantescos de autores à la carte, tudo o que os pagodeiros precisavam era de Thiaguinho e Rodriguinho.

Os dois demonstraram que ainda estão em grande sintonia, contando causos e relembrando parcerias. Uma das últimas canções foi "Tem Café", hit de Gaab, que vem a ser filho mais velho do ex-Travessos, para mostrar o que esperar desse legado.

Depois veio o Chrigor. Já vi algumas vezes Thiaguinho dividindo o palco com ele, e a tensão no ar é sempre palpável. Não por questões pessoais, já que os dois parecem se respeitar muito. Thiaguinho é muito generoso e educado com seu predecessor no Exaltasamba, e Chrigor sempre faz questão de demonstrar uma gratidão gigantesca. Mas são como água e óleo.

Enquanto Thiaguinho tem aquele estilo vigoroso, capaz de aguentar um show com mais de 5 horas como se estivesse jogando uma altinha com os amigos na beira do mar, Chrigor opera em uma frequência absolutamente diferente. Sempre teve uma cadência mais lenta e um timing sui generis para fazer intervenções fora das músicas.

Vê-los esgrimando para homenagear a fase pré-Thiaguinho do Exalta tem seus momentos divertidos e frustrantes. Mas o saldo final é muito positivo, pelo acontecimento da reunião de ambos em cima do palco, trocando juras de afeto mútuo enquanto mandam brasa na track list daquele CD inesquecível de 2002. Teve espaço até para "Oposto do Meu Ser", primeira colaboração do Chrigor como compositor, lá do segundo disco do Exaltasamba.

E veio do Chrigor também o único momento mais ou menos político da noite. Logo que entrou no palco, pediu para a banda tocar "Lucidez", clássico do Jorge Aragão que ficou famoso no repertório do Fundo de Quintal (do "É Aí Que Quebra a Rocha", discaço de 1991 que todo mundo deveria ouvir), e emendou que "é o que o Brasil está precisando no momento".

Chrigor é um artista demasiadamente humano, e é sempre um deleite poder prestigiá-lo em grandes eventos e recebendo a atenção e o carinho que ele certamente merece. Dessa forma, a boa intenção de Thiaguinho, mesmo deixando a fluência do show menos fácil durante esse trecho, merece aplausos entusiasmados. E foi o que eu ouvi lá no Anhembi.

Mas o grande encontro da noite foi entre Thiaguinho e Péricles. Gosto da maneira enfática e superlativa como Thiaguinho apresenta o ex-parceiro de Exalta, "o maior cantor de samba da história". Não sou especialista, mas quando ouço Pericão cantar tenho dificuldades para duvidar.

Para quem era fã da banda, é emocionante ouvir Thiaguinho cantando música solo do Péricles e vice-versa. Se abraçaram várias vezes no palco, e esse afeto transmite uma miríade de boas sensações para a plateia. Acho que estamos todos precisando. Os dois ainda receberam Leíz, do Turma do Pagode, para uma breve participação que deu a dimensão de ambos para o gênero.

Depois de 7 anos, Thiaguinho e Péricles continuam falando sobre o fim do Exaltasamba, e é difícil acreditar que já passou tanto tempo. Terminar no auge dá nisso. Comentaram no palco que continuam parceiros, amigos e estarão juntos para sempre. Pela frequência com que é possível vê-los cantando no mesmo palco, acho que é verdade.

Entre uma participação especial e outra, Thiaguinho emendou sucessos da carreira solo e muitas músicas dos anos 1990. Raça Negra, Só Pra Contrariar, Art Popular e o Grupo Sensação entraram em um balaio que eu sempre considerei muito interessante nos shows do cantor: também teve Jota Quest e Cidade Negra, além de uma sequência de músicas do Tim Maia com Thiago Abravanel e "Envolvidão" com o próprio Rael no palco.

Claro que tem o lado comercial: uma festa com todas essas atrações, em que o set list ultrapassa os limites da carreira do headliner, certamente atrai mais atenção do que se fosse apenas uma apresentação com as músicas do Thiaguinho. Quem estava na fila do bar sabe do que estou falando. Mas também serve como uma celebração autofágica das influências do artista –e das próprias convicções sobre qual é o lugar que ele ocupa na música popular brasileira.

Enquanto relembra os sucessos de 30 anos atrás, celebra de onde veio e o que consumiu para estourar como cantor e compositor a partir de 2003 –e principalmente depois de 2005. Além disso, mostra que seu trabalho está na mesma prateleira do chamado "pop" nacional, sem dever nada a ninguém, pois o samba nunca foi de arruaça. Ao cantar a própria história, Thiaguinho narra a história da nossa geração.

Fiquei bastante impressionado com o poder de mobilização do "Tardezinha", que chegou a lembrar os picos de popularidade do Exaltasamba em meados dos anos 2010. Não consegui ficar até o final do show, pois estou velho e acabado. Pedi arrego (e um táxi) depois de um pouco mais de 5 horas de show. Ele ainda cantava algum axé da Banda Eva enquanto eu partia rumo ao oblívio. Se a dificuldade de conseguir cerveja gelada teve algum lado positivo, é que pelo menos ainda consigo lembrar de todos os momentos desse show.

Voltamos a qualquer momento com novas informações.

Sobre o autor

Entusiasta e divulgador da cultura muito popular. Escreve sobre os intrigantes fenômenos da TV e da internet desde 2002